No Ceará, linha de 13km de extensão encabeça a pretensão brasileira de fazer ressurgir o transporte de pessoas por via férrea
Patrick Cruz, enviado especial a Crato e Juazeiro do Norte (CE) | 09/03/2011 13:04
Foi Jonas de Andrade quem cantou:
Doutor, bota o trem de volta
Doutor, é o transporte do pobre
De Juazeiro vou para o Crato
Do Crato para Fortaleza
Era uma beleza
Era uma beleza
Jonas de Andrade, batizado João Pereira de Andrade, apelidado de Bilinguim por Luiz Gonzaga e de Gogó de Aço pelas evidências de sua arte, nascido em 1941, no Crato, e finado no ano do Senhor de 1995. O sanfoneiro, que Deus o tenha, conterrâneo do padre Cícero Romão Batista, aquele santo homem, e cantador do Trio Nortista partiu do mundo antes de o doutor atender seu pedido. De Juazeiro ao Crato, o trem, transporte do pobre, está de volta.
A 570km de distância do jogo mais próximo da Copa de 2014 e indiferente ao falatório sobre o trem-bala do Sudeste, o Metrô do Cariri já completou um ano de operação
Foto: Patrick Cruz/iG
É trem, mas pode chamar de metrô. A 570 quilômetros de distância de Fortaleza, onde ocorrerá o jogo mais próximo na Copa de 2014, e ignorando o alarido sobre o trem-bala do Sudeste, o Metrô do Cariri é, neste momento, a prova mais concreta de um aclamado novo boom do transporte de passageiros por linha férrea.
Em dezembro, o Metrô do Cariri completou um ano de operação. Com ele foi revisitada a antiga ligação entre Crato e Juazeiro do Norte, municípios vizinhos do Vale do Cariri, no sul do Ceará. Apesar de o nome fazer referência às rápidas linhas férreas de grandes metrópoles, o metrô local é um típico Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), modalidade de transporte de passageiros por linha férrea de média capacidade: um VLT carrega a cada hora entre 30 mil e 40 mil pessoas por sentido – embora o do Cariri leve atualmente muito menos gente que isso. Em um metrô, a capacidade é o dobro desse contingente. (E o VLT é usualmente operado na superfície; os metrôs perfazem boa parte de seu curso em linhas subterrâneas). Não que ao Cariri faltassem pré-requisitos para ter um transporte característico de grandes centros urbanos: em 2009, com suas 540 mil almas, a microrregião do Cariri foi transformada em região metropolitana.
O VLT Crato-Juazeiro do Norte, o mais palpável indício dos investimentos bilionários que o transporte ferroviário de pessoas no Brasil aguarda para os próximos anos (os cálculos falam de cifras de R$ 75 bilhões a mais de R$ 100 bilhões em meia década), tem 13,6 quilômetros de extensão, oito estações (o edital para a construção da nona já está pronto), dois carros de passageiros (o terceiro já foi comprado), anda a 40 quilômetros por hora e exigiu investimentos de R$ 31 milhões até o momento. Trens e estações são impecavelmente limpos e organizados, profissionais de segurança são vistos em todos os pontos de embarque e a pontualidade faria corar os bissextos ônibus de metrópoles congestionadas. “E o povo adora trem”, afirma Antonio Chalita de Figueiredo, gerente de controle e tráfego da Companhia Cearense de Transportes Metropolitanos (Metrofor), empresa do governo estadual que administra o serviço.
Foto: Reprodução Ampliar
Jonas de Andrade, do Trio Nortista, tinha saudade do trem entre Crato e Juazeiro do Norte. Ele não viveu para testemunhar a retomada da linha férrea
Antes da missa, o passeio
Aquele trem do Crato para Fortaleza
Era uma beleza
Era uma beleza
Levava eu e tu
Do Crato pra Iguatu
No último ano e pouco, a rotina de Antônio Nascimento Filho é mais ou menos essa: acorda, toma o desjejum, apanha o Metrô do Cariri e viaja entre as estações até a hora do almoço. Feita a refeição, ele se entrega à sesta vespertina, que precede a missa do fim do dia. Na manhã seguinte, Metrô do Cariri mais uma vez.
Aos 79 anos e viúvo, Antônio é um dos habitués que fazem do trem um passatempo. O aposentado costuma ter a companhia de três amigos nas viagens cotidianas, mas nesse dia estava só – os outros membros do grupo foram afugentados pela chuva que caiu no início da manhã na região. “A gente fica assim, passeando e vendo o movimento”, diz.
Muitos dos usuários mais fiéis do Metrô do Cariri estão ali motivados também pela nostalgia. Passageiros de mais idade, como Antônio, testemunharam o período em que a estrada de ferro levava gente de Crato a Juazeiro – e também a Iguatu e Fortaleza, como cantava, saudoso, Jonas de Andrade. A ligação ferroviária da região do Cariri até a capital cearense nasceu da Estrada de Ferro de Baturité, a primeira ferrovia do Estado, inaugurada em 1873. O transporte por trem da região ao litoral continua a ocorrer, mas somente para carga.
A nostalgia é apenas parte do cotidiano do Metrô do Cariri. A atriz Lílian Carvalho estava a décadas de chegar ao mundo quando o Diário do Ceará publicou em sua edição de 26 de outubro de 1926: “Causou indizível satisfação nesta villa a alviçareira e sensacional notícia de haverem chegado à vizinha cidade do Crato os trilhos da Rêde de Viação Cearense, inegáveis vehiculos do progresso. Exultando de jubilo está toda a população do Cariry”, dizia a grafia original do periódico. Lílian não está ali pela saudade do trem da infância, mas enxerga outras virtudes no transporte.
Foto: Patrick Cruz/iG
No Metrô do Cariri, Antônio Nascimento Filho mata a saudade do trem da infância - em viagens diárias
“O metrô é confortável, muito melhor que os ônibus”, afirma. Para se deslocar diariamente de Juazeiro do Norte a Crato, onde atua na Companhia Cearense de Teatro Brincante, ela tem também a opção de vans particulares, alternativa igualmente descartada em favor do metrô. “A segurança das Topic é um problema”.
Concorrência a domicílio
Se você ia fazer boa viagem
Levava a família e a bagagem
A produção era uma beleza
Aquele trem do Crato pra Fortaleza
A atriz Lílian Carvalho tem a seu favor o fato de morar perto de uma estação em Juazeiro do Norte e de descer na estação do Crato, que fica próxima das atividades da companhia teatral. Vantagem similar tem Luiz Elias de Araújo, monitor do Projeto de Reabilitação Vida Livre (Previl), entidade que trabalha para recuperar dependentes químicos: moradia perto de uma estação em Juazeiro do Norte, trabalho bem diante de uma estação em Crato. “Se eu viesse de ônibus, teria que andar bastante depois de descer no ponto”, diz.
O Metrô do Cariri, entre Crato e Juazeiro do Norte (CE)
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O que é trunfo para Lílian e Luiz é queixa para outros usuários: a distância da linha do trem até as áreas mais centrais das duas cidades. Esse fator explica em grande parte o ainda reduzido fluxo de gente nas estações: com capacidade para transportar até 15 mil pessoas por dia em seus dois carros equipados com ar condicionado, assentos reluzentes e passagem a R$ 1, o Metrô do Cariri recebe 1,2 mil pessoas diariamente. A Metrofor, que administra o sistema, já detectou a anomalia e prepara para este mês a integração das estações com linhas de ônibus nas duas cidades.
Até que a integração se efetive, boa parte dos usuários do transporte público continuará a dar preferência a moto táxis, ônibus (que custam R$ 1,30) e Topics. Estas oferecem a alternativa de buscar os passageiros em casa para deixá-los na porta de seu local de destino.
Lúcia Dias Soares, merendeira nascida e criada nas cercanias de onde hoje funciona a estação São José do Metrô do Cariri, faz muxoxo também para a demora entre os trens - são dois os carros na linha, percorrida em 35 minutos.
Mas a observação fica em segundo plano. A merendeira faz graça ao relatar os primeiros meses de usuária do serviço, quando não era cobrada tarifa – “andei muito de graça” -, elogia o conforto do ar condicionado e de assentos sempre disponíveis, mas exalta com particular ênfase a segurança. No início de 2010, Lúcia estava com sua irmã em um ônibus invadido por um assaltante armado. “Minha irmã teve revólver na cabeça e perdeu R$ 70. Foi horrível”, conta ela. “Passou no jornal e tudo”. O calor do relato, feito na estação São José, se dissipou com o ar fresquinho do trem em que ela rapidamente embarcou.
Doutor, bota o trem de volta
Doutor, é o transporte do pobre
O trem agora só traz matéria-prima
É gás butano, óleo, álcool e gasolina
Doutor
Doutor
É trem, mas pode chamar de metrô.
http://economia.ig.com.br/empresas/i...145168034.html
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